Arando com um Rolls-Royce: Gilberto Chierice, a Inovação a Partir de Recursos Nacionais e os Dilemas da Ciência Brasileira
Introdução: Um Cientista no Brasil – Entre Vanguarda e Controvérsia
Gilberto Orivaldo Chierice (1943–2019) transcende a definição convencional de um químico para se consolidar como uma figura emblemática, e por vezes paradoxal, na história da ciência brasileira. Sua trajetória profissional, marcada por inovações de impacto global e por controvérsias de alcance nacional, serve como um microcosmo para analisar tanto o vasto potencial científico do Brasil quanto os seus desafios estruturais mais profundos. Este relatório propõe uma análise aprofundada da vida e obra de Chierice sob a ótica da "alavancagem nacional", um conceito que aqui se define como a capacidade estratégica de converter recursos endógenos — sejam eles naturais, como a mamona, ou humanos, como a formação de pesquisadores de alto nível — em ativos tecnológicos e econômicos de elevado valor agregado. O trabalho de Chierice com o óleo de mamona representa um modelo tangível e bem-sucedido dessa alavancagem, enquanto sua incursão no campo da fosfoetanolamina expõe as complexas e arriscadas dinâmicas da prática científica quando esta se desvia do consenso institucional e regulatório.
A busca por essa alavancagem é um tema central na história do desenvolvimento brasileiro, uma nação que historicamente luta contra a dependência tecnológica e a condição de exportadora de commodities de baixo valor agregado. Este cenário é agravado por um fenômeno persistente e debilitante: a "fuga de cérebros", que drena do país seus profissionais mais qualificados, formados com expressivo investimento público, para centros de pesquisa e indústrias no exterior. A carreira de Gilberto Chierice, em sua essência, constitui uma poderosa contranarrativa a essa tendência. Sua trajetória demonstra um compromisso fundamental com a criação de valor dentro das fronteiras nacionais, transformando um recurso agrícola brasileiro em tecnologia de ponta e, simultaneamente, dedicando-se à formação de novas gerações de cientistas no coração de uma das mais importantes universidades do país.
A análise de sua obra revela um legado dual, que reflete as tensões inerentes ao fazer científico no Brasil. De um lado, figura a inovação universalmente aclamada do poliuretano de mamona, um biopolímero com aplicações revolucionárias na medicina e na construção civil, que culminou na criação de uma empresa de base tecnológica e na conquista de mercados internacionais. Do outro, emerge a saga profundamente divisiva da fosfoetanolamina, a "pílula do câncer", um episódio que mobilizou a esperança de milhares de pacientes, instigou a judicialização da saúde, provocou intervenção legislativa e, por fim, colidiu com os veredictos rigorosos dos ensaios clínicos controlados. Esta dualidade não é apenas uma contradição pessoal, mas o reflexo de conflitos mais amplos entre a autoridade científica, a esperança pública, a responsabilidade ética e os marcos regulatórios que governam a inovação em saúde. Compreender a complexidade da trajetória de Chierice é, portanto, essencial para decifrar os dilemas e as oportunidades que continuam a moldar o futuro da ciência e da tecnologia no Brasil.
Tabela 1: Trajetória Cronológica de Gilberto Chierice em Contexto
Ano | Marco na Carreira de Gilberto Chierice | Contexto Científico, Político e Econômico no Brasil |
---|---|---|
1943 | Nascimento em Rincão, São Paulo. | Período do Estado Novo sob Getúlio Vargas. |
1969 | Conclui a graduação em Bacharelado e Licenciatura em Química pela UNESP de Araraquara. | Regime Militar; auge do "Milagre Econômico". |
1973 | Conclui o mestrado em Química (Físico-Química) pela Universidade de São Paulo (USP). | Crise do Petróleo impacta a economia global e brasileira. |
1976 | Ingressa como docente no Instituto de Física e Química de São Carlos (IFQSC), precursor do IQSC-USP. | Início do processo de abertura política lenta e gradual. |
1979 | Conclui o doutorado em Química (Química Analítica) pela USP. | Segundo choque do petróleo agrava a crise econômica. |
Década de 1980 | Inicia pesquisas pioneiras com o óleo de mamona para desenvolvimento de poliuretanos. | Fim do Regime Militar (1985); Promulgação da Constituição Federal (1988); Criação do Ministério da Ciência e Tecnologia (1985). |
Década de 1990 | Inicia a síntese e distribuição informal da fosfoetanolamina no campus da USP São Carlos. | Período de hiperinflação seguido pelo Plano Real (1994); Abertura econômica e privatizações. |
1996 | Reconhecido como um dos 100 maiores cientistas brasileiros do século XX, pelo trabalho com o polímero de mamona. | Consolidação do sistema nacional de pós-graduação e fomento à pesquisa. |
1997 | Funda a empresa Poliquil Polímeros Químicos em Araraquara para comercializar a tecnologia do poliuretano de mamona. | Lei de Inovação (Lei nº 10.973) seria sancionada anos depois (2004), incentivando a relação universidade-empresa. |
2013 | Aposenta-se como Professor Titular do Instituto de Química de São Carlos (IQSC-USP). | Período de expansão do investimento em C&T, mas com sinais de futura crise fiscal. |
2014 | USP proíbe a produção e distribuição da fosfoetanolamina, desencadeando a judicialização do caso. | Início de uma severa crise econômica e política no país. |
2015 | O caso da "pílula do câncer" ganha repercussão nacional, levando a audiências públicas no Congresso Nacional. | Intensificação da crise política que levaria ao impeachment presidencial em 2016. |
2016 | Início dos ensaios clínicos controlados com a fosfoetanolamina, coordenados pelo ICESP. | Lei que liberava a substância é sancionada e, em seguida, suspensa pelo Supremo Tribunal Federal. |
2019 | Falece em 19 de julho, aos 75 anos, vítima de infarto. | Período de contingenciamento e cortes orçamentários significativos para a ciência e tecnologia no Brasil. |
Capítulo I: A Revolução da Mamona – O Polímero que Imita o Osso
A contribuição mais celebrada e duradoura de Gilberto Chierice para a ciência e a tecnologia brasileiras reside em sua capacidade de transformar um recurso agrícola abundante, o óleo de mamona, em uma plataforma de materiais avançados. Esta seção de sua carreira representa um arquétipo do conceito de "alavancagem nacional", demonstrando um caminho concreto para a agregação de valor, a inovação disruptiva e a soberania tecnológica a partir de uma base endógena.
A Filosofia do "Rolls-Royce": Uma Visão para a Bioeconomia Brasileira
No cerne da filosofia de Chierice estava uma profunda insatisfação com o modelo econômico primário-exportador do Brasil. Sua visão foi imortalizada na célebre analogia proferida ao criticar o uso do óleo de mamona para a produção de biodiesel: “Usar mamona para essa finalidade é um desperdício. É como arar a terra com um Rolls-Royce”. Esta frase, mais do que um aforismo espirituoso, encapsula uma tese econômica fundamental: a de que os recursos naturais de alto valor intrínseco devem ser destinados a aplicações tecnologicamente sofisticadas, que geram maior valor agregado, em vez de serem consumidos como simples commodities energéticas.
Para compreender a profundidade dessa visão, é crucial contextualizá-la na realidade agrícola e econômica da mamona (Ricinus communis L.) no Brasil. O país figura entre os maiores produtores mundiais, com uma cultura historicamente concentrada na região Nordeste, especialmente no semiárido baiano, e fortemente associada à agricultura familiar. A mamoneira, adaptada a condições de estresse hídrico, representa uma fonte de renda vital para pequenos e médios produtores. Chierice enxergou nesse cenário não apenas uma planta, mas uma plataforma para o desenvolvimento regional sustentável. Sua filosofia antecipou em décadas o discurso contemporâneo sobre a bioeconomia, que preconiza o uso inteligente e sustentável da biodiversidade para gerar produtos inovadores, empregos qualificados e desenvolvimento social inclusivo. Ao defender o uso "nobre" da mamona, ele propunha um desvio radical do ciclo de dependência, onde o Brasil exporta o óleo bruto para que nações industrializadas o transformem em produtos de alta tecnologia, que são, por sua vez, reimportados pelo Brasil a preços muito superiores. A proposta de Chierice era internalizar essa cadeia de valor, transformando o "petróleo verde" brasileiro em um motor de inovação nacional.
Da Planta ao Polímero: A Ciência de um Material Revolucionário
O salto visionário de Chierice foi fundamentado em uma profunda compreensão da química do óleo de mamona. Diferentemente da maioria dos óleos vegetais, o óleo de mamona é composto por aproximadamente 90% de ácido ricinoleico, um triglicerídeo que possui uma característica química peculiar e valiosa: uma hidroxila (OH) ligada à sua longa cadeia de carbono. Essa hidroxila reativa o torna um poliol de origem natural, um precursor ideal para a síntese de poliuretanos (PUs) através da reação com um diisocianato. O grupo de pesquisa liderado por Chierice no Instituto de Química de São Carlos (IQSC-USP) dominou essa reação, desenvolvendo um processo robusto para a produção de uma família de biopolímeros com propriedades notáveis.
A excelência científica do grupo manifestou-se na capacidade de modular as propriedades do material final. Ao ajustar a razão estequiométrica entre os grupos isocianato e hidroxila (a razão NCO/OH), era possível controlar o grau de reticulação (crosslinking) da matriz polimérica. Isso permitia a criação de poliuretanos com características distintas: rígidos, semirrígidos e flexíveis. A caracterização detalhada desses materiais, utilizando um arsenal de técnicas analíticas como Espectroscopia de Infravermelho com Transformada de Fourier (FTIR), Análise Termogravimétrica (TGA) e Difratometria de Raios-X (XRD), confirmou as diferenças estruturais e térmicas decorrentes dessas variações na síntese, atestando o domínio científico sobre o processo.
Além da versatilidade, o poliuretano de mamona apresentava um conjunto de vantagens intrínsecas que o posicionavam como um material de vanguarda. Primeiramente, sua origem em uma fonte vegetal renovável o alinhava com os crescentes imperativos de sustentabilidade, oferecendo uma alternativa ecológica aos polímeros derivados do petróleo. Em segundo lugar, estudos comprovaram sua biodegradabilidade, uma característica crucial para mitigar o impacto ambiental em diversas aplicações. Por fim, e talvez o mais revolucionário, o material demonstrou ser excepcionalmente biocompatível, ou seja, capaz de interagir com o organismo humano sem provocar reações adversas ou de rejeição, abrindo um vasto campo de aplicações biomédicas.
Aplicações de Alto Valor: Transformando a Medicina e a Construção Civil
A genialidade do trabalho de Chierice e sua equipe não se limitou à síntese do polímero, mas estendeu-se à sua aplicação em áreas de alto impacto estratégico. Na medicina, o poliuretano de mamona representou uma verdadeira revolução. Sua biocompatibilidade permitiu o desenvolvimento de próteses ósseas para reconstrução craniana, maxilofacial e ortopédica que, ao contrário dos implantes metálicos ou de outros polímeros, não eram rejeitadas pelo corpo. A inovação mais notável, contudo, estava na capacidade de produzir o material em uma forma porosa. Quando implantado em contato com o tecido ósseo, este polímero poroso funcionava como um arcabouço osteocondutor: as células ósseas do paciente migravam para dentro dos poros e, em um processo bioquímico, o organismo gradualmente absorvia e metabolizava o polímero, substituindo-o por osso novo e regenerado. Esta propriedade transformou a prótese de um simples substituto inerte em um agente ativo de regeneração tecidual. Além das próteses ósseas, o material encontrou aplicações na área estética, como fios para o combate à flacidez da pele.
O mesmo conhecimento foi habilmente transferido para a construção civil, um setor tradicionalmente dependente de materiais de alto impacto ambiental. O poliuretano de mamona emergiu como uma alternativa sustentável e de alto desempenho. Na forma de membranas flexíveis, tornou-se um impermeabilizante eficaz para lajes, telhados e reservatórios, com excelente aderência a diversas superfícies como concreto e metal. Na forma de espuma rígida, demonstrou ser um isolante térmico de alta eficiência, contribuindo para o conforto ambiental e a economia de energia em edificações. Sua versatilidade permitiu ainda seu uso como adesivo de alta performance para madeira laminada colada (MLC) e como matéria-prima para painéis estruturais, sempre com a vantagem de ser atóxico, livre de solventes voláteis e derivado de um recurso renovável.
Tabela 2: Propriedades e Aplicações do Poliuretano de Óleo de Mamona
Tipo de Propriedade | Característica Específica | Aplicação Chave | Fonte de Referência |
---|---|---|---|
Biológica | Biocompatibilidade (ausência de rejeição) | Próteses ósseas (cranianas, maxilofaciais, ortopédicas), implantes dentários, fios estéticos. | |
Osteointegração e Regeneração Óssea | Preenchimento de defeitos ósseos, onde o polímero poroso é substituído por osso novo. | ||
Biodegradabilidade | Aplicações médicas temporárias; redução do impacto ambiental no descarte. | ||
Mecânica | Dureza e Flexibilidade Ajustáveis | Formulações rígidas para substituição óssea; formulações flexíveis para membranas e selantes. | |
Alta Resistência à Abrasão e Ruptura | Revestimentos de piso industriais, superfícies de alto tráfego. | ||
Adesão a Múltiplos Substratos | Adesivo estrutural para madeira laminada colada (MLC), união de concreto, metais e fibras. | ||
Térmica | Estabilidade Térmica | Isolamento térmico em sistemas de cobertura (espumas rígidas), aplicações em temperatura ambiente. | |
Baixa Condutividade Térmica | Forros e painéis para isolamento em construção civil. | ||
Química | Resistência a Agentes Químicos | Revestimento de tanques, pisos industriais e estações de tratamento de efluentes. | |
Origem de Fonte Renovável e Atóxica | Substituição de polímeros derivados de petróleo em múltiplas indústrias, sem emissão de solventes voláteis. |
Do Laboratório ao Mercado: O Estudo de Caso da Poliquil
A trajetória do poliuretano de mamona não se encerrou nos artigos científicos ou nos protótipos de laboratório. Chierice compreendeu que a verdadeira "alavancagem nacional" só se concretizaria com a transferência efetiva da tecnologia para o setor produtivo. Este passo crítico, frequentemente denominado "vale da morte" da inovação brasileira devido à dificuldade de conectar a pesquisa acadêmica ao mercado, foi transposto por meio de uma iniciativa empreendedora do próprio pesquisador. Em 1997, ele fundou a Poliquil Polímeros Químicos, uma empresa spin-off sediada em Araraquara, com o objetivo explícito de produzir e comercializar os biopolímeros desenvolvidos na USP. A gestão da empresa foi confiada a técnicos que haviam trabalhado diretamente com ele no desenvolvimento da tecnologia, garantindo a manutenção do conhecimento técnico essencial.
A Poliquil rapidamente se estabeleceu como um caso de sucesso de inovação de base tecnológica no Brasil. A empresa desenvolveu um portfólio com mais de 300 itens catalogados, produzindo peças customizadas de acordo com as necessidades específicas de médicos e engenheiros. O reconhecimento da qualidade e da inovação do produto extrapolou as fronteiras nacionais. Um marco decisivo foi a obtenção, em 2003, da aprovação da Food and Drug Administration (FDA), a rigorosa agência reguladora dos Estados Unidos. Esta certificação, cujo custo foi financiado por uma empresa parceira americana, não apenas validou a segurança e a eficácia do biomaterial nos mais altos padrões internacionais, mas também abriu as portas para o maior mercado de produtos médicos do mundo. A história da Poliquil, que permanece comercialmente ativa , é uma demonstração inequívoca de que é possível superar o "vale da morte" da inovação no Brasil. Contudo, ela também revela um fator crucial para esse sucesso: a figura do "cientista-empreendedor". Chierice não se contentou em ser um acadêmico; ele assumiu o risco de criar uma empresa, registrar patentes e impulsionar ativamente a comercialização de sua invenção. Este perfil, ainda raro no ambiente acadêmico brasileiro, foi determinante para que a pesquisa de ponta gerada na universidade pública se transformasse em um produto competitivo globalmente, gerando riqueza, empregos e prestígio para o país.
Capítulo II: A Saga da Fosfoetanolamina – A "Pílula do Câncer" e a Crise da Autoridade Científica
Em profundo contraste com o sucesso e o reconhecimento unânime de seu trabalho com polímeros, a segunda grande linha de pesquisa de Gilberto Chierice, a fosfoetanolamina sintética, mergulhou-o em uma das mais intensas e complexas controvérsias científicas da história recente do Brasil. Este capítulo analisa a trajetória da chamada "pílula do câncer" não como uma simples disputa sobre a eficácia de um composto, mas como um fenômeno sociocientífico que expôs as tensões entre pesquisa, regulação, esperança pública e a própria natureza da autoridade científica.
A Hipótese Científica e Suas Origens
A incursão de Chierice no estudo da fosfoetanolamina não foi arbitrária. Sua hipótese partiu de observações da literatura científica das décadas de 1970 e 1980, que indicavam uma correlação entre a presença de fosfoetanolamina e tumores em animais. Enquanto alguns trabalhos sugeriam que a substância poderia ser um subproduto do processo cancerígeno, Chierice formulou uma hipótese inversa: a de que o organismo poderia estar produzindo a fosfoetanolamina como um mecanismo de defesa contra o tumor. Sua teoria postulava que a molécula atuaria como um marcador específico para células tumorais. Estas células, caracterizadas por um metabolismo predominantemente anaeróbico (que não utiliza oxigênio), seriam "sinalizadas" pela fosfoetanolamina, tornando-as alvos visíveis para o sistema imunológico do paciente, que então as destruiria.
Esta linha de raciocínio, que se baseava na já conhecida diferença metabólica entre células normais e cancerosas — um fenômeno descrito por Otto Warburg desde a década de 1930 —, conferia uma plausibilidade inicial à investigação. No início de seus trabalhos, nos anos 1990, Chierice estabeleceu colaborações com instituições de saúde, como o Hospital Amaral Carvalho em Jaú, para realizar os primeiros estudos e fornecer a substância a pacientes, operando sob as regras do Ministério da Saúde da época para pesquisa clínica. Ele e sua equipe conseguiram sintetizar a molécula em laboratório e realizar testes preliminares em roedores que, segundo ele, demonstraram a ausência de toxicidade aguda do composto. Foi a partir desses resultados iniciais e de sua hipótese sobre o mecanismo de ação que se iniciou a longa e controversa jornada da distribuição da substância.
Um Fenômeno Nacional: Esperança Pública, Ação Judicial e Intervenção Política
Por cerca de duas décadas, a fosfoetanolamina sintética foi produzida de forma artesanal no laboratório de Chierice no IQSC-USP e distribuída informalmente a pacientes com câncer que o procuravam em São Carlos. Durante esse período, o composto permaneceu como um fenômeno majoritariamente local, sustentado por relatos anedóticos de melhora e pela figura carismática do professor. A situação mudou drasticamente em 2014, quando a reitoria da USP, alertada sobre a produção e distribuição de uma substância sem registro sanitário e sem comprovação clínica de eficácia, emitiu uma portaria proibindo a atividade.
Essa proibição foi o estopim de uma crise de proporções nacionais. Pacientes que utilizavam a substância e novos interessados, amparados por uma narrativa de que uma cura milagrosa estava sendo suprimida pela burocracia, recorreram massivamente ao Judiciário. Iniciava-se um intenso processo de "judicialização da saúde", com milhares de liminares sendo concedidas por juízes em todo o país, obrigando a USP a fornecer as cápsulas. O caso explodiu na mídia, transformando Chierice em uma celebridade e a "pílula do câncer" em uma causa nacional. A imensa comoção pública e a pressão de grupos de paci entes levaram o debate para a esfera política. Em 2015 e 2016, foram realizadas audiências públicas de grande repercussão na Câmara dos Deputados e no Senado Federal, nas quais Chierice, seus colaboradores e pacientes emocionados testemunharam em favor da substância.
O ápice da intervenção política ocorreu em abril de 2016, quando o Congresso Nacional, atropelando os ritos regulatórios da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), aprovou e a então presidente Dilma Rousseff sancionou uma lei que autorizava o uso da fosfoetanolamina por pacientes com câncer, mesmo sem os testes clínicos exigidos para qualquer outro medicamento. A medida, no entanto, foi efêmera. No mês seguinte, o Supremo Tribunal Federal (STF), em uma decisão histórica, suspendeu a eficácia da lei, reafirmando a necessidade de seguir os protocolos científicos e regulatórios para garantir a segurança e a eficácia de tratamentos médicos. A saga da fosfoetanolamina evidenciou uma profunda falha na comunicação científica e uma desconfiança generalizada nas instituições. A narrativa que se consolidou no imaginário popular foi a de um cientista-herói lutando contra um "sistema" — composto por universidades, agências reguladoras e a indústria farmacêutica — que estaria deliberadamente obstruindo o acesso a uma cura. Esse enredo, alimentado pela esperança e pelo desespero de pacientes e familiares, criou um ciclo vicioso em que a pressão pública impulsionou ações judiciais e políticas que contornavam o processo científico, gerando um impasse que só poderia ser resolvido pela própria ciência.
O Veredicto Científico: Os Ensaios Clínicos do ICESP
Diante da enorme pressão social e da necessidade de uma resposta definitiva, o Governo do Estado de São Paulo, com o apoio do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, financiou a realização dos primeiros ensaios clínicos rigorosos e controlados com a fosfoetanolamina sintética. A coordenação do estudo foi confiada ao Instituto do Câncer do Estado de São Paulo (ICESP), uma das mais respeitadas instituições de oncologia da América Latina.
O estudo foi desenhado em múltiplas fases, seguindo os protocolos internacionais para testes de novos medicamentos. A primeira fase, iniciada em julho de 2016 com um pequeno grupo de 10 pacientes, teve como objetivo primário avaliar a segurança e a toxicidade da substância. Os resultados desta etapa, divulgados em outubro de 2016, confirmaram as observações preliminares de Chierice: a fosfoetanolamina, nas doses administradas, não apresentava toxicidade significativa ou efeitos adversos graves, recebendo assim autorização para avançar para a fase seguinte.
A segunda fase foi projetada para avaliar a eficácia do composto. O plano era recrutar até 210 pacientes, divididos em 10 grupos de 21, cada um com um tipo diferente de tumor avançado (como câncer de pulmão, mama, cólon, entre outros). O critério de sucesso, internacionalmente aceito, seria a observação de uma resposta objetiva — definida como uma redução de pelo menos 30% no tamanho das lesões tumorais — em um número mínimo de pacientes de cada grupo. Os resultados, no entanto, foram desanimadores. Em março de 2017, o ICESP anunciou a suspensão do estudo. Dos 72 pacientes que haviam sido tratados até então, 59 já haviam passado pela primeira reavaliação. Desses, 58 não apresentaram qualquer resposta objetiva ao tratamento. Apenas um único paciente, com melanoma, demonstrou uma resposta parcial. O grupo de câncer colorretal, o primeiro a ser completado, não teve nenhum paciente com a resposta esperada. Diante da ausência de "benefícios clínicos significativos", a equipe médica e científica do ICESP, liderada pelo oncologista Paulo Hoff, concluiu que seria antiético continuar recrutando novos pacientes para o estudo. O veredicto da ciência, obtido através do método mais rigoroso disponível, foi claro: a fosfoetanolamina sintética, apesar da esperança que gerou, não demonstrou eficácia como tratamento contra o câncer.
Capítulo III: O Legado Acadêmico – Construindo uma Dinastia Científica no IQSC-USP
Para além de suas célebres e controversas linhas de pesquisa, o legado de Gilberto Chierice está profundamente enraizado na estrutura institucional e humana da Universidade de São Paulo. Sua atuação como professor titular e orientador no Instituto de Química de São Carlos (IQSC-USP) foi fundamental para a formação de uma geração de cientistas e para a consolidação de um dos mais importantes programas de pós-graduação em química do país. Esta dimensão de sua carreira, embora menos visível ao grande público, representa talvez sua contribuição mais duradoura para a "alavancagem nacional" da ciência brasileira.
Um Fundador de Excelência: O Programa de Pós-Graduação em Química Analítica
A chegada de Chierice a São Carlos em 1976 coincidiu com um período de expansão e consolidação da pesquisa na USP. Ele foi uma figura central na criação, implementação e consolidação do Programa de Pós-Graduação em Química Analítica no então Instituto de Física e Química de São Carlos (IFQSC), que mais tarde se tornaria o IQSC. Em um depoimento póstumo, seu colega, o Professor Fernando M. Lanças, descreveu a organização da proposta do programa como uma "tarefa hercúlea" assumida por um grupo de pesquisadores visionários, entre os quais Chierice desempenhou um papel de liderança.
Sua influência foi marcante desde o início. O primeiro mestrado do programa, defendido em 1989, e a primeira tese de doutorado, defendida em 1990, foram ambos orientados por ele. Este pioneirismo estabeleceu um padrão de excelência e rigor que ajudou a moldar a identidade do programa. A iniciativa de criar uma área de pós-graduação específica para a Química Analítica foi crucial para acomodar os interesses de pesquisa que não se encaixavam perfeitamente na área de Físico-Química, que era a única existente até então. Isso permitiu um florescimento de novas linhas de pesquisa e atraiu estudantes e pesquisadores de todo o Brasil, transformando o IQSC em um polo de referência nacional na área.
Um Mentor e Pesquisador Prolífico
O impacto de Chierice como educador e mentor é evidenciado pelo sucesso de seus orientados. Fontes institucionais destacam que ele foi "orientador de dezenas de mestres e doutores" ao longo de seus 37 anos de dedicação à USP. Em uma homenagem realizada para celebrar os 100 primeiros doutores formados pelo programa de Química Analítica do IQSC, o Professor Fernando Lanças, ele mesmo um dos fundadores do programa, foi reconhecido como o orientador com o maior número de teses defendidas, um testemunho da cultura de mentoria e produtividade que ele e Chierice ajudaram a instituir.
Além da formação de recursos humanos, sua própria produção científica foi vasta e influente. Plataformas acadêmicas como o Google Scholar registram milhares de citações a seus trabalhos, um indicador quantitativo do impacto de suas pesquisas na comunidade científica global. Sua produção abrangeu não apenas os polímeros de mamona e a fosfoetanolamina, mas também estudos em equilíbrio químico, óleos essenciais e diversas outras áreas da química analítica, conforme listado em seu currículo e em bases de dados de pesquisa.
A combinação de sua liderança institucional na criação de um programa de pós-graduação de excelência com sua dedicação à orientação de um grande número de estudantes qualificados representa uma forma de "alavancagem nacional" tão ou mais significativa que suas inovações materiais. Enquanto a "fuga de cérebros" continua a ser um dos maiores desafios para o desenvolvimento científico do Brasil, a atuação de Chierice como formador de uma dinastia de pesquisadores representa um esforço concreto e bem-sucedido na direção oposta. Ao construir uma infraestrutura humana e institucional robusta, ele ajudou a criar um ecossistema capaz de reter talentos e gerar conhecimento de ponta em solo brasileiro, um legado que continua a render frutos através do trabalho de seus ex-alunos e do prestígio do programa que ele ajudou a fundar.
Conclusão: A Alavancagem Inacabada de um Cientista Brasileiro
A trajetória de Gilberto Orivaldo Chierice é uma narrativa complexa, que espelha as próprias contradições e aspirações da ciência no Brasil. Ao analisar sua vida e obra, emerge um legado dual, composto por um triunfo da inovação e uma tragédia da controvérsia. Juntos, esses dois pilares oferecem lições profundas sobre o caminho para a "alavancagem nacional" e os perigos que o permeiam.
De um lado, a história do poliuretano de mamona permanece como o modelo exemplar de como a ciência brasileira pode, de fato, alavancar o país. Partindo de um recurso natural abundante, Chierice aplicou conhecimento químico de fronteira para criar um produto de altíssimo valor agregado, com aplicações disruptivas em áreas estratégicas como a saúde e a construção civil. Mais importante, ele completou o ciclo da inovação, transferindo a tecnologia da bancada do laboratório para o mercado global através da criação de uma empresa spin-off, a Poliquil. Este feito representa a materialização da soberania tecnológica: uma ideia nascida e desenvolvida no Brasil, que gerou patentes, produtos, empregos e reconhecimento internacional. É a prova de que o país pode, sim, transcender sua condição de exportador de commodities.
Do outro lado, a saga da fosfoetanolamina serve como uma poderosa e sombria advertência. Ela ilustra os perigos que surgem quando a esperança e a pressão pública atropelam o rigoroso e indispensável processo de validação científica. O caso expôs uma fratura na confiança entre a sociedade e as instituições científicas, criando um vácuo preenchido por narrativas simplistas de heroísmo e conspiração. A intervenção judicial e legislativa, embora bem-intencionada, ao contornar as etapas de ensaios clínicos, colocou em risco a saúde pública e minou a autoridade dos órgãos reguladores. O resultado final, determinado pelos estudos do ICESP, reafirmou um princípio fundamental: na ciência, a evidência objetiva, e não o testemunho anedótico ou a aclamação popular, deve ser o árbitro final da verdade.
Retornando à sua célebre metáfora, Chierice personificou o desafio brasileiro de "arar a terra com um Rolls-Royce". Ele foi, simultaneamente, o engenheiro que projetou o Rolls-Royce a partir de matéria-prima nacional e, em outro momento, o condutor que se viu em uma estrada tumultuada pela paixão pública e pela complexidade institucional. Sua vida nos deixa um legado inacabado. Ele demonstrou que o Brasil possui tanto a terra fértil (seus vastos recursos naturais e agrícolas) quanto a capacidade de construir o Rolls-Royce (sua excelência científica e capital humano). O desafio que permanece, e que a história de Chierice ilumina de forma tão contundente, é fortalecer as instituições, a cultura científica e os mecanismos de comunicação que permitam que esses dois potenciais se conectem de forma sistemática, ética e produtiva. Gilberto Chierice foi um cientista brilhante, visionário e, em última análise, profundamente humano em suas convicções e falhas. Sua obra oferece um roteiro claro para a inovação baseada em recursos nacionais, mas também um lembrete indelével dos desafios institucionais e culturais que o Brasil ainda precisa superar para realizar plenamente seu potencial científico e tecnológico.
Referências
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